terça-feira, 29 de maio de 2012

Emagreci demais,
pode ser câncer,
ou pode ser só porque
não me alimento direito,
porque não tenho
tempo pra almoçar
e a pressa me deixa
enjoado e sem apetite.
Se for só isso, tudo bem,
significa que eu ainda tenho
alguns anos antes do câncer
aparecer de verdade.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Depois que eu morrer
pode me chamar do que quiser,
só não me chama de volta,
por favor, não me chama de volta.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Eu não tenho só roupa bonita, eu tenho
roupa feia também, e escolho quais os
dias que sairei bonito e quais os dias
que sairei feio, e se chove e a roupa
bonita não seca eu tenho que sair feio
de novo, não tenho opção. Às vezes
eu misturo uma coisa com outra e
parece que isso me deixa confiante,
que fico confortável ou mesmo normal,
mas na moda, muito humano.
Se eu tivesse dinheiro, seria bonito
todos os dias, compraria coisas novas
todos os dias e no final de semana
seria mais bonito ainda, sim, seria mais
bonito ainda, tenho certeza disso...
mas eu sei que sempre que a chuva viesse
eu não saberia qual roupa escolher.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Nós temos a mesma altura,
exatamente a mesma altura,
ela adora isso, e acha graça do mistério.
Mentira, é claro,
mas é importante que seja assim
porque nada depende
da conversa entediante,
nem do medo de precisar daquilo,
também não importa se é real,
na verdade nada importa
porque nós temos o mesmo tamanho,
por fora, é claro,
e eu tenho certeza que ela adora isso
sempre que sorri pra mim
lá de cima.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Não, agora não levo nada comigo, nada maior,
apenas o importante,
e ainda me tranco no quarto,
e organizo as gavetas,
e ainda choro quando encontro
alguma coisa que não lembrava
que tinha guardado. Eu limpo ela
e aperto com a mesma mão de sempre,
como se fosse um corte aberto,
e sorrio, tentando imaginar
que tenho por um instante
aquela inalcançável vontade de envelhecer.
Eu imagino sim, muitas coisas.
Imaginei a beleza uma vez,
imaginei o que poderia viver lá dentro,
e se seria seguro, e se ficaria longe do chão,
e quando acordamos eu me despedi dela
e pensei em algo pra dizer depois,
mas eu não disse, só entreguei
o que ela tinha esquecido comigo,
e fiquei esperando alguma mudança,
alguma que levasse tudo o que é meu embora,
e ela chegou.
Agora não levo nada comigo, nada maior,
apenas o importante.

domingo, 20 de maio de 2012

não combina com a posição
e o dono da loja seguia sorrindo
a gravata dele também não combinava
todo mundo continuava passando
e olhando como se fosse um atentado
era o cheiro da intimidade de quem sabe negociar
o tamanho mudava o valor do que procurava
sempre seguindo a variação que a gerência buscava ditar
com o mau hálito conhecido daquele departamento
outro coitado vestido de autoridade
isso dava segurança para tentar
novamente expandir o limite
e ser chamado pelo nome
e colocava o cartão entre os favoritos
nunca usados da carteira.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Ele cumpria pena
na adega escura,
todas as noites do inverno.
Nada machucava
o canto da caneca,
nem o lábio duro
do velho que segurava
tremendo o toco
de vela apagado pela poeira.
Quase sempre chovia,
e quase sempre inundava tudo.
Sobrava uma parte pros cães
e o resto ia fora com a água,
descendo as escadas,
levando tudo que ele tinha,
como prova divina de cuidado.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Caso de liberdade I

Os escravos observaram
os próprios reflexos
nas vitrines das lojas
que passavam do lado de fora,
então veio o pensamento
de que cada um era fruto
da mesma troca.
O ônibus parou,
todos rasgaram
os contratos,
cortando com cuidado
as digitais impressas
sobre as letras miúdas.
A parte que se libertou
ficou olhando
de longe a multidão
que se reunia todos os dias
nesse mesmo lugar, entre
o caminho da casa, da igreja e do trabalho,
cuidando para não pisar
em nenhuma das pragas
que corriam entre os pés inchados
pelo esforço repetido.
Agora todos eram livres,
mas ainda sentiam
um pequeno incômodo quando
observavam seus rostos desconhecidos
sorrindo e refletindo
entre os cartazes de promoções.

terça-feira, 8 de maio de 2012

A diferença entre
uma boa e uma
má pessoa
está no quanto
cada uma consegue
esconder sobre
si mesma.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Ana

Entrar de cabeça no mundo
gritando e ensinando
é a tua metade do trabalho.
Tudo o que é nosso
passa por ti, mesmo que escondido,
e até nas casas de fitas
o repertório copiado à risca
segue esperando
uma discussão qualquer terminar
para ser aproveitado.
É na noite que eu vejo,
longe da rotina que enjoa,
o teu olho brilhar,
com alguma lembrança perdida,
onde nenhuma luz alcança,
em algum canto de bar.

domingo, 6 de maio de 2012

Você secaria suas veias,
largaria seus vícios por um dia e
dormiria na rua por exaustão e raiva
daria o resto de sua bebida para qualquer pessoa
mas nenhum centavo para que comprasse sua própria dose
porque essa sensação é sua, apenas de sua.
Logo, mesmo que andar com moedas
não seja uma obrigação
você faz, e detesta, e reclama, e esvazia os bolsos
na porta de entrada do Banco,
e esvazia os bolsos logo que sai do Banco,
e corre atrás do prejuízo até escurecer
e é aí que você decide dormir pela rua mesmo.

sábado, 5 de maio de 2012

essa guerra me enlouquece
todos lutam feridos
em causa própria
ou lutam juntos
por causa nenhuma
e no fim todos morrem
carregando alguém
ou alguma coisa
valiosa demais pra cair sozinha.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Mantenha tudo na concentração certa
para vê-los sentados nas cadeiras,
ou deitados nas camas,
apoiados ao lado da mesa,
posando para a eternidade
com os olhos apertados
e o peito limpo para análise
dos intrusos e visitantes desinteressados
que nem sequer perguntam
o que fazem esses corpos,
inertes e inúteis,
presos num porta-retrato
de moldura barata e moderna,
como tudo hoje em dia.
Talvez seja isso a natureza morta,
ou mesmo uma nova corrente
de pensamentos fundidos
e fodidos, ferrados e manchados,
vazios e viciados,
escravos de qualquer álbum
aberto, incompleto e perdido.

Requer habilidade,
que por certo não tenho,
para avistar o exato instante da captura,
quando tudo sai do corpo para
respirar e logo submergir à sua cela,
garantindo a genialidade que serve à distração,
a engenharia que não serve à nada,
garantindo que se ancore mais um momento,
catalogado e engavetado, preservado
para queimar em alguma fogueira,
em alguma caverna,
daqui a alguns milhares de anos.